A Mestra que nunca treinou: uma utopia

Uma homenagem do Grupo de Capoeira Angola N’Golo à Mery

Treinel é o caralho!!! Assim disse a voz já enfraquecida de Mery num dos dias lúcidos, dos últimos anos de sua vida. Todo o sopro de vida guardado, ainda que amargando a cobrança da conta de anos de tabagismo, ventava para a capoeira angola e para o grupo que essa mestra fundou e deu o nome: N’golo.

Mulher, negra, moradora da Baixada Fluminense, mãe de dois filhos, além de ser Ialorixá, esposa e companheira incondicional de um mestre de capoeira. Se o leitor tá achando moleza, é porque não sabe o peso desse pacote. Porque dentro disso tinha, além da guarda da memória da capoeira angola e do candomblé, o trabalho doméstico (invisível para e desprezado por muitos) durante os treinos de seu marido, no seu período de formação. Também incluía o suporte aos seus companheiros: Moraes, o mestre, mais Braga, Neco e Marco Aurélio, então alunos, junto com José Carlos. Mery não treinava com eles, mas ali estava incondicionalmente dando todo o apoio material e emocional a estes que posteriormente fizeram a escola angoleira de capoeira no Rio de Janeiro.

Para se ter ideia do peso desse pacote, na roda de titulação de Zé Carlos, nasceu Marlon, o primeiro filho do casal. Mery deu à luz sem ter a presença do pai da criança durante o trabalho de parto e na maternidade. Mestre Moraes havia sentenciado que, quem não estivesse naquela roda, não receberia título de mestre e, portanto, não poderia dar aulas, nem formar grupos. Diante de tal condição e do risco à conquista de um sonho, que a essa altura não era só de Zé Carlos, mas de Mery também, não houve outra alternativa. Esse seria somente mais um peso, entre tantos outros, do mesmo pacote.

Não vou nem me alongar nas responsabilidades espirituais a seu cargo pra não cansar o leitor. Porque se fosse pra entrar nessa seara, teríamos que fazer outro longo texto só para essa parte. Se o incauto leitor acha que ser Ialorixá é pra qualquer uma sacerdotisa, está mais que redondamente enganado. Está poliedricamente enganado! Cuida-se dos santos de todos: dos filhos carnais, dos espirituais e de quem mais precisar. Este cuidado implica diversos outros, bem como tarefas, obrigações, prazos… Para isso, é preciso muita sabedoria, muito conhecimento. E isso, a Mery tinha de sobra. Só quem já esfolou a mão de tanto picar quiabo, ou de tanto descascar feijão fradinho, atendendo às solicitações e recomendações atentas e preciosistas dessa filha de Oyá é que sabe.

Se a capoeira angola criou raiz no Rio de Janeiro, foi porque, entre outros fatores, houve a presença e a atuação desta mulher. Na real, Mery era mãe não somente de dois filhos carnais com o Mestre Zé Carlos, mas também mãe de todo o N’golo e – por que não? – mestra de capoeira angola sem nunca ter dado sequer um rabo de arraia. Nunca deu uma chapa, uma rasteira, mas já tombou muita baraúna, deu muita volta ao mundo. Mery era aquela formiguinha miudinha que, quando mordia, arrancava o couro (o Mestre que o diga!). Entendia de capoeira como poucos praticantes. Sabia que capoeira era infinitamente muito mais do que pernadas e armadas. Compreendia que a mandinga e a ginga andavam de mãozinha dada com a utopia.

Sabemos que a noção de coletividade não é algo de fácil compreensão e, mais ainda, de se praticar. Afinal, estamos todos inseridos dentro de uma lógica perversa que privilegia o individualismo, a meritocracia e a competição. Para que a coletividade e a colaboração se construam é preciso muito mais do que empatia, senso de fraternidade, práticas coletivas ou mesmo decisões tomadas coletivamente. O couro sempre come muito feio quando se pratica a coletividade. É por causa disso que é preciso outra base mais firme e mais difícil, justamente porque é crua e poética. Ou melhor, porque é feminina: o olho no olho, o papo reto, o diálogo, os abraços, os afetos, os silêncios, os sonhos. Sem essa viga, não há grupo que se construa e se sustente, tampouco há qualquer proposta de coletividade possível.

Mery era essa viga. Fincada em suas raízes de mulher negra, detentora de um conhecimento ímpar de sua ancestralidade, ela também voava em direção a esse sonho, a essa utopia de vida coletiva, de divisão justa do trabalho, das responsabilidades pelo coletivo, de valorização da feminidade que existe em cada um de nós. Essa feminidade transbordante, essa vaidade de filha de Oyá, jamais se apagou, mesmo nos dias mais cansativos de sua existência. As mulheres e homens que com ela conviveram também aprenderam o peso de lutar por essa utopia, sobretudo em espaços marcados por um senso de masculinidade destrutivo, isto é, contrário à ideia de compartilhamento, de coletividade, de sensibilidade e de beleza.

Se os treinos de capoeira angola, com suas movimentações, jogos e ritmos se davam nos espaços físicos onde os alunos se encontravam, a construção dessa base utópica se dava no espaço afetivo, cósmico, dialógico e lúdico onde o olhar e os abraços de Mery nos acolhia. Qualquer problema no trato interpessoal, lá estava a mestra ventando sabedoria, como boa filha de Oyá.

E foi soprada por esse vento que nossa mestra soltou a frase que inicia essa singela homenagem. Já debilitada em função de seu último e derradeiro AVC, movia as suas persistentes energias para apoiar a titulação de alguns dos antigos alunos do grupo que fundara. Sabia ela, exatamente, quem poderia ou não ser titulado. Afinal, ela acompanhou o parto, o nascimento e o crescimento de todos aqueles alunos, desde o primeiro dia de treino. Viu a primeira roda de muitos dos integrantes, testemunhou quedas, cabeçadas, tretas… Nesse momento, mesmo debilitada, tomava parte na discussão, levada a cabo por seu esposo, sobre dar ou não titulação aos alunos mais dedicados do N’golo.

Sabia ela também da origem do suposto posto de treinel. Como boa entendedora das bases e fundamentos da capoeira angola, sua frase reivindicava a coerência dentro do N’golo. Diversas vezes ouvimos nosso mestre dizer que em capoeira angola só havia mestre, contramestre e aluno. O novo posto remetia a mais uma hierarquização criada em contextos de internacionalização da capoeira angola. Nesse sentido, Mery se contrapunha ao titulo de treinel, mantendo seu compromisso com uma postura assumida lá atrás, quando os primeiros mestres de capoeira angola estavam se formando, nos idos dos anos 1980. Era tudo ou era nada. Escolhe um caminho e vai. Tal como Moraes sentenciava naquela roda que titulou os primeiros mestres angoleiros do RJ.

A capoeira angola, feminina até no nome, perdeu a sua primeira e única mestra que nunca dera sequer um rabo de arraia. Não precisava. Ela era o próprio rabo de arraia. Quando Oyá ventava, então… Sai de baixo! Ela era a própria armada! Tivemos a sorte de ter convivido com nossa mestra. De ter compartilhado com ela a realização desse sonho que ela teve junto com Zé Carlos: a construção da utopia da coletividade através do N’golo; a continuidade da nossa memória e ancestralidade; a fortificação de nossas raízes.

Descanse em paz, Mestra Mery! Estaremos sempre tudo junto e misturado.
Te agradecemos imensamente.

Axé, Mery!